quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Eu sinto




Sabe?  Eu sinto falta de nossos corpos na história escrita. Ainda hoje, eu sinto.

Eu sinto falta de nossas palavras ditas, firmadas no presente, de nossas lutas em existir através delas ao longo dos anos que não se foram e os que estão por vir.

Eu sinto falta da voz de uma velha senhora mãe, mulher de cor que pisa na terra, fuma charuto e lava roupa na beira do rio, sustenta a família mercando ou cantando, administra as contas, o alimento das crianças e ainda roda a saia.

Eu sinto falta do sol raiando o dia nem tão quente, outono ou primavera chegando, eu sinto um friozinho gostoso da tarde de sol. Sinto saudade daquela saia rodando na praça, o couro comendo e o corpo sambando no centro. As alegrias da gente não podem ser descritas por uma retórica acadêmica. Eu sinto falta da vida lá fora.

A vida aqui dentro não para de viver. Educação é movimento, escutei um dia lá na Universidade,  da cacica Nadia Akauã e desde então eu me entendo nessa história dançante de um modo que nem sei dizer. Eu sinto falta de não precisar dizer, sabe? Eu sinto.

Eu sinto falta dos fatos nunca noticiados, que a gente vive e sabe. A história que é e chega aqui, mesmo acontecendo em outro lugar. O vento me avoaça e sopra de longe uma saudade que sinto.  Eu tenho saudade de ser Tupinambá. Tenho saudade da África Bantu.

Estou voando num buraco grande e vazio entre o agora e o tempo inteiro de todo o lugar. Eu, partícula vizinha de outra partícula, e outra, e outra que movimentam este lugar. Eu tenho saudade da roda onde todo mundo está. Roda, roda e todo mundo está.

Onde estão Ginga e Conga, Janaína e Tarumin, se não em mim?

Aonde está o agora e quantos agora cabem aqui em quem eu sou?

Cabaça, útero, estupro, vísceras, semba, umbigo, movimento, parentas, sambaquis, tubarão, mangue, mãe, folhas, caruru, ladeira da misericórdia, vó miúda, minha terra, benim, capoeira, angola, popó, maculelê, bahia de dona dalva, zelita, aurinda, nenete, dona ana, matarandiba, saubara, santo amaro, são tomé, trem, sertão, recôncavo, papel rosa, escola, roda, atabaque, tremor, candomblé, toré, medicina, mulher...

Eu sinto falta de mim e isso não é um problema.

Estou aqui.

Eu sempre estive aqui.

 

Tempo-gira



 Agô! Malembe! Bandagira! Saravá!

Quanto sangue escorre entre a vida e a morte?

“Na minha aldeia gira sol e também a lua. Que tempo é esse, meu Deus?”

Ah, mulher...

Mulher corpo corpa cores corre escorre escorrega

Senta brinca no chão do terreiro

Pila pilão

Pisa pé firmado de leveza

Amassa o barro massapê

Escorre escorrega corre

Cai não cai

Canta Iaô  Kota Mametu Cacica

Canta praia canta folha canta tudo

Larga o doce que é seu

É mel

É meu

É minha história

E na minha natureza, essa história conto eu

Folha fresca

Folha seca

Bate folha

Pisa chão vento avoa

Reza ri

Benze banho tempo

Banzo água agora

Saudade. Quem sabe da minha sou eu

 

Quantos tempos cabem neste agora?