terça-feira, 19 de abril de 2016

amor

minha cabeça é uma pluma
quando é cachoeira meu coração.

tchau, querida!

Quando lá para as onze, eu resolvi ir para casa e deixar rolar a finalização que eu já sabia o resultado, estava meio lesada. O nó que ameaçava entrelaçar minhas vísceras, afrouxou enquanto nas superfícies eu ia ficando trêmula. Sentia-me anestesiada com tudo que acabara de presenciar em rede nacional; mais uma mostra de que nossas leis são servidoras de interesses pessoais.

Pessoalidades foram as expressões mais presentes nas falas daqueles homens e mulheres, se utilizando da audiência quase absoluta daquele evento televisado, para mandar recados clichês para suas mães, filhos, esposas...  Alimentando suas vaidades, enfiando guela abaixo da população, seus egos e entes no registro da história do país. E não houve o que fizesse aqueles deputados federais de classe primária, ou ensino fundamental I, se comportarem conforme seus papéis, diante do país inteiro. Cheguei a lembrar dos programas de calouros nas ruas, onde as pessoas ficam disputando um espaço na câmera atrás do candidato, tipo “olha, eu na tv!”.

Centenas de parlamentares votando com tanta convicção de seus discursos, que dava até emoção. A questão é que suas palavras se desencontravam, um discurso invalidava o outro. Todo mundo sustentava uma verdade. Fiquei pensando na população do outro lado da tela, cansada com o histórico processo de mentiras, uma educação frágil e opressora que se limita convenientemente a ensinar o “sim” e o “não”... Vulnerável em meio ao mar de mentiras daquela bancada por ela eleita.

O impeachment contra a presidenta Dilma Roussef é o golpe que frutifica da árvore da conspiração contra o PT, que governa o país há quatro mandatos, tendo reeleito presidente um nordestino pobre e em seguida uma mulher. Uma afronta para os tradicionais chefes de estado.

O sistema deu boas vindas e integrou seus recém-chegados ao mecanismo de falcatruas histórico-político brasileiro. Todos que ali estiveram, dançaram conforme a dança. E não há ingenuidade que me convença ter sido a contragosto.

O que meu corpo sentia era influenciado, no entanto pelo eco do pensamento parafraseado: Não houve crime de responsabilidade, o que justificaria o pleiteio do impeachment. Houve o termo sensação do momento, pedaladas fiscais, especialidade dos políticos partidários aqui na eterna colônia de exploração. A pois que escravizaram os africanos, exterminaram os indígenas e os bustos de bronze exibem o reconhecido valor de brancos sanguinários. E quando o genocídio do povo negro vem lembrar à favela com cheiro de sangue fresco, eles invertem os discursos, marginalizam nossa gente, põe provas falsas, nos incriminam, prendem e matam.

Qualquer que tente travar ou desacelerar a máquina do poder, não sobrevive a ela.
Bolsonaro, Cunha... Conheço tão pouco e estou tão perplexa que temo saber mais.

Em tempos de julgamento, os bonzinhos entregam seus pecados nas mãos do perdão e apontam com todos os dedos e acusações possíveis contra seu inimigo, como se moral para isso tivessem.

A corrupção fede apodrecida sob o sol, depois de se encharcar de terra quando a chuva cai. É uma lama que volta a secar novamente, e encharcar novamente. As leis da natureza não isentam nada ou ninguém.

(...)

Tubarão foi dormir silenciosa depois de chover na periferia. Senti a noite triste e a lua crescendo calada, impiedosa e decepcionada. Enquanto na Avenida Cardeal da Silva, moradores dos edifícios gritavam freneticamente “tchau, querida!”

Ainda cedo fui ofendida por um “amigo do facebook”. Me disse que eu deveria estudar para não fazer mais cagada, de acordo com minha publicação acerca do processo de impeachment. Antes de excluir seus comentários e romper nossa relação virtual, fui me recordar quem era o cidadão. Santista, irmão da minha amiga. Filho de classe média, lá pelos trinta, que até outro dia, e talvez ainda hoje, mora com a mãe. Papai investiu em seus estudos, enquanto ele se descobria em festas, drogas e sexo, até o dia que escolhesse a profissão do pai ou talvez algo inusitado que o permitisse viajar pelo mundo, deixando as grandes dificuldades de sua vida para trás, como o sol forte das dez queimando seu rosto e o acordando tão cedo depois de uma noite de farra, o aumento da gasolina, talvez o trânsito caótico das cidades. Não sei bem. Mas não deve ser muito longe disso.

A noite chegou quando mulheres, homens, senhores, meninos de bigode ralo na cara, herdeiros de cargos políticos, representativamente brancos ou embranquecidos, estavam lá, dizendo “sim” a um processo inconstitucional, que rompe com a ética jurídica do país, afirmando redundantemente com todas as verdades sobre quem estavam representando: suas esposas, filhos, seus pais, sua família. A Deus eles invocavam para proteger e abençoar o país. Isso é tão contraditório porque eles demonstram segurança na emissão do “sim”, mas expressam transparente dúvida quanto ao futuro do país. Quem acredita que está naquelas mãos, melhor começar a trabalhar, porque decerto não estamos sob os mesmos cuidados de seus parentes e amigos. E quando os militares de 64 são homenageados é que eu peço “parem o mundo que eu quero descer”. É princípio capitalista, para uns ganharem muito, outros muitos tem que ganhar muito pouco. Para uns sustentarem certos luxos, muitos precisam morrer. Uma bancada de assassinos, me convenci.

O playboy de Santos estava bem representado ali. Os moradores da Cardeal também. Me senti como poucos indignados por trás do microfone, esmagada pela traição nacional, sem me ver representada enquanto suburbana, negra, pobre, mãe solteira, educadora, universitária, fazedora da cultura popular. De onde vem a maioria da população brasileira, não se herdam privilégios sociais, se conquistam. E a conquista maior de cada dia é sobreviver. Nossos caminhos são áridos, temos sede e por vezes fome.

Nos últimos anos, vimos um apoio por parte do estado às nossas antigas demandas, um olhar diferente para nossas lutas, um olhar mais de perto para os nossos direitos, possibilidades ainda que subvertidas de transformar nossas realidades e ascender no país que construímos.
Mas no meio deste mar, de peixes grandes e perigosos, é preciso cuidado. Peixe pequeno é piaba, que quando cresce um tantinho, o cardume assassino da bancada, sorrindo, como quem não quer nada. Nada... Nada...


Tchau, querida!