terça-feira, 10 de junho de 2014

Dança: Descobertas e Libertação.


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A menina mestiça nascida em Cachoeira e crescida em Salvador não tivera contato com suas origens ancestrais. Além do distanciamento da cor, a sua matriz cultural estava dissolvida numa colônia de exploração e catequese forçada.

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No Rio de Janeiro, onde também pulsa a herança étnica de África, comecei a sentir vibrações diferentes nas rodas de Capoeira.

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Minha identidade ancestral começou a florescer e foi se revelando em muito mais que amor. Aos poucos eu ia, e vou, descobrindo o que esse turbilhão de sensações quer me dizer.

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Voltei para a Bahia, voltei para morar na periferia de Salvador com uma outra visão de mundo e ações, com a missão de multiplicar aquilo que foi perdido e com o distanciamento, foi deixando nossa comunidade também perdida no curso de sua história.
Tudo mudou porque eu não voltei, estou seguindo no caminho.

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Até hoje não sei com clareza o que acontece quando estou dançando, mas respostas para inúmeras questões são trazidas pelo contato da música com o meu corpo, que vou conhecendo e descobrindo mais a cada dia.

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A dificuldade de me enquadrar em perfis estereotipados de dançarina ou coreografias muito marcadas me distanciaram de atividades que iniciei quando criança. Mas a vibração da dança sempre foi involuntária dentro de mim. A música, principalmente de percussão, bate neste corpo como as mãos daquele que toca os atabaques.


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Os moldes sociais foram persistentes em me acanhar, e ainda são, mas de alguma maneira eu sempre burlava esse sistema aprisionador e caia na dança.

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Como toda experiência, os espelhos daquele quarto me ensinaram demais. Sozinha em casa eu dançava, dançava, dançava... E longe das técnicas coreográficas eu desacorrentava meu corpo.

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Uma amiga certa vez declarou que quando nos conhecemos ela tinha vergonha de sair comigo para dançar porque as pessoas ficavam me olhando.

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E tudo isso fez muito sentido para mim, pois nas palavras de Lulu eu ia encontrando as crianças negras da periferia com suas cabeças baixas, seus olhares escondidos, um andar de quem foge, se esconde, teme o olhar do outro... Teme um chicote chamado discriminação. 

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Notei que meu corpo também estava colonizado e se as pessoas já se chocavam com a minha dança, a partir deste dia, elas que se preparassem porque as correntes que ainda me acorrentavam, estavam sendo partidas naquele momento. 

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Admirada com o discurso do grande coreógrafo de Butoh, Kazuo Ohno, de que quanto mais se aproxima da técnica, mais se afasta da vida e ainda que ignora técnicas e estruturas para focar no espiritual, fui encontrando mais respostas para essa dança que sai de dentro de mim e antes nasce em um lugar sagrado para onde estou, em religação, a seguir.

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Já tenho 31 anos.

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É como acordar, tomar um banho, se vestir, perfumar, pentear e sair de casa, mas até que se chegue ao destino e realize o que motivou a sair, não está completa. Pronta sim, completa não. 
Daí a cabocla entra na roda e todo o universo a abraça num movimento único que é tão dela quanto do mundo inteiro. Quando essa cabocla dança tudo se explica. E leve ela volta para casa na malemolência da vida, na mandinga de Angola.


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Achei interessante... Impossível fazer o mesmo movimento duas vezes. Dentro e fora da gente é tudo diferente a cada instante, logo cada movimento virá carregado de um “novo recheio”.

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Não tenho a postura corporal ideal, pois estive longe das técnicas, mas nunca me distanciei da dança, por isso sei que tenho a dança ideal: a minha dança. E ela é mutante e mutável porque ela sou eu.

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O que é certo e o que é errado então? Nas aulas de Lulu e na vida, eu faço como meus ancestrais, vou refogando o certo com o errado, tempero com o que presta, aquilo que dizem não prestar, misturo com muito amor e recebo o axé para preparar uma feijoada de “branco lamber os beiços”.  

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O conhecimento teórico para os olhares alheios pode ser algo bem superficial nas disciplinas de dança. Nos poucos títulos que conheço de inúmeras publicações que a dança preenche no mundo inteiro, vou encontrando palavras para descrever, ou pelo menos tentar, esse diálogo que a dança traça com meu corpo e minha alma.

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Sinto-me assim, um corpo mediador de um continente mãe que não quer calar.

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Para mim também a dança é carregada, é forte e espiritual.
Danço para Deus, para a música e para mim. 
Se a minha dança tocar de alguma forma o irmão presente, estou dançando para ele também.

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Numa viagem recente a um lugar quase intocado na Chapada Diamantina, descobri que as árvores dançam. Descobri que dançam ao som da vida.
As árvores dançam quando estão crescendo e até que voltem para adubar a terra, estão em movimento os seus galhos, seu tronco e suas folhas. E nós, meros efêmeros, não conseguimos acompanhar esse movimento porque temos muita pressa e muito que fazer.

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Carrego para a sala as danças que a vida me dá, e levo de lá as novas danças que nascem desse encontro entre meu corpo, o espaço, movimentos e toda a sabedoria abordada naquele retângulo que, por suas janelas, respira o mesmo ar que as árvores lá fora.

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O Professor é um Mestre que devia ser mais respeitado. O Professor que cutuca, desafia, esbraveja. Professor que se importa com o aprendizado do aluno muitas vezes até mais que o próprio aluno.

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Quantos alunos pouco se importam com as aulas de Prática de Dança, mantendo o seu desequilíbrio funcional, desconhecendo as origens de muitas das suas aflições?

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O homem ocidental europeu convencionou a escrita como grande fonte de conhecimento, fazendo o homem crer que está aquém de um conjunto de códigos que o limita, ignorando a pesquisa, maior preciosidade do aprender. (...) Mas o que esses e tantos outros homens e mulheres descobriram e ensinaram não será possível de codificar porque está para além das palavras, assim como a dança.


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O meu coração bombeia dança e educação. A dança é o combustível do meu corpo e a educação é o combustível do meu povo.

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Eu não sei aonde vou chegar, mas ficar parado dói, seguir é um baile e eu adoro bailar.

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Da minha cultura ancestral ainda tenho muito que aprender. São poucos os registros, mas o colonizador não deu conta de apagar nossas memórias, as memórias de nossos corpos e a história que nossa gente viveu.

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Sinto profundidade tamanha em tudo isso que a minha dança é, nada mais que um rastro da memória guardada na história de minh’alma. 




Recortes do diário de bordo, atividade proposta pela Professora Lulu Pugliese na disciplina de  Prática da Dança, Universidade Federal da Bahia.