quarta-feira, 28 de maio de 2014

áfrica alma brasileira

antes designado mercadoria da nação
arrancado dos seios de mãe
mareado por ventos e tempestades
irmãos ao mar

o chão que pisa desconhece
a mão que abriga chicoteia feridas
a natureza observa o respirar da vida
que não dá regalia

o destino negro é recomeçar antes de ser
acordar antes do amanhecer
dormir cedo e suado

o fardo negro é vaidade
e preguiça do senhor do tráfico
fragmentado na espécie que abortou

a carne é uma espécie de massa
modelada sem dó
na colonização deformada da raça sem cor

aquele que te “filhou” é opaco junto a ti
que plantou a terra com coração,
silenciou na mata velada,
velou a cachoeira mais alta
e bebeu água pura de sabedoria

faz tanto tempo que estou aqui... não lembro como a pele desbotou e o cabelo amoleceu. Talvez na lama do alimento, no barro da engoma, na areia do terreiro... Não sei.
Agora eu vejo de fora, falo de perto e sinto de dentro o que a gente viveu nessa terra onde batalha é dia e celebrar é ordem de deus.

banhei nas águas do cabo verde, no rio senegal
cortei meus sonhos em cachoeira, no canavial
sonhei outra vez

para rezar meu povo canta
para comer a gente reza
a alquimia perfeita é oração manifesta

na praça da capital me chamaram vadia e só de pirraça, cheia de graça, eu dancei.

dancei o saber do meu povo
que disseram saber de nada
na umbigada, quem dança comigo sente
revelando o que pensou desconhecer

a dança declara que não foi de graça
aonde a dor foi semeada
água é o que não falta
e fertiliza alegria por onde passa

para as batalhas que ainda nascem com o sol, preparamos novas armas e usamos a mesma armadura, tão velha quanto renovada, que chamamos de alma.




terça-feira, 27 de maio de 2014

Morro da Babilônia. Resposta ao Professor.

Morro da Babilônia

À noite, do morro
Descem vozes que criam o terror
(terror urbano, cinquenta por cento de cinema,
a o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral)

Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro,
O quartel pegou fogo, eles não voltaram.
Alguns, chumbados, morreram.
O morro ficou mais encantado.

Mas as vozes do morro
Não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado
Que domina os ruídos da pedra e da folhagem
e desce até nós, modesto e recreativo,
como uma gentileza do morro.


No poema Morro da Babilônia, o eu poético tem um olhar de fora, para ser mais precisa, um olhar de baixo. Escuta vozes que descem do Morro, e por ser um observador e não um vivente daquela realidade supõe qual terror as vozes lá de cima criam.
A habitação no Morro da Babilônia começa por volta de 1907, três décadas antes da publicação do poema. Em 1940 o resquício escravista é mais intenso que hoje, quando ainda vivemos em uma sociedade etnológica e politicamente subversiva.
Na primeira estrofe, Drummond expõe a identidade do poema com o conjunto literário. O morro representando as diferenças sociais. Tratar de morro no Rio de Janeiro não precisa de tradução para desigualdade social, e no Brasil, desigualdade social não precisa de tradução para realidades entre negros e brancos, estatisticamente falando. O terror que ele afirma urbano, divide ao meio, sendo a metade cinema, imitação ou representação da vida real e a outra metade vinda de Luanda, remetendo à “migração acorrentada” – os morros abrigam percentuais maiores de afrodescendentes que as regiões de maior concentração capital - ou se perdeu na língua geral, que seria o resultado dessa mistura de etnias/línguas. O terror urbano de Drummond vem da população, seja comprando ideias cinematográficas ou sendo a própria causa da confusão de conceitos que descem o morro, chegando aos burgueses de forma inconsistente e permitindo diversas conotações.
O morro da Babilônia fica atrás do bairro da Urca, onde estão localizados quartéis do exército e marinha. Mas quando o quartel pega fogo, se espalham pelo morro, não capitães ou comandantes, mas soldados. E eles não voltaram. Alguns, chumbados, morreram. O morro ficou mais encantado. Mais desigualdade social, agora uma poética que relata sem sugestões e afirma o encanto do morro. Seria encanto o fenômeno dos soldados mortos,chumbados? Seriam as damas desiludidas, encantadas com os militares de baixa patente que se espalharam pelo morro? Talvez o viés de uma narrativa cinematográfica. De baixo, de onde se escuta as vozes, distante dos fatos, longe do morro, não é possível ser preciso ao descrever o apreciar do seu encanto.
Daí então o poeta cumpre o papel que lhe cabe ao intelecto e ressalta a incrível arte de viver da gente do morro. Sim, ele conhece vozes do morro, elas o acessaram, e sua gentileza também. A vibrante música do morro. No período em que o poema foi publicado, eram inúmeras provas do poder ilimitado do morro da Babilônia e tantos outros.
Lá debaixo, da zona sul, onde o morro fica encravado, escuta-se um cavaquinho bem afinado  que domina os ruídos da pedra e da folhagem e desce até nós modesto e recreativo. O que o poeta não sabia, ou fingia não saber, como muitos em sua situação socioeconômica, é que aquele cavaquinho era muito mais que modesto e recreativo, ele era e ainda é uma arma de longo alcance, comunicação e poder de persuasão, que ilude finos pensadores e seus resquícios de escravidão.
A voz que desce do morro é história de terror, é morte, encanto e mesmo assim, como diz o próprio poema, nem sempre são tristes ou fúnebres. Ao contrário, dominam e cantam toda a gentileza do morro.
Mirando o passado, através do contexto histórico que permeia a história das favelas na cidade do Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade, inclui extrato da época da escravidão, continua a poética na mistura de etnias, responsável por uma língua geral, aponta ao cenário militar representando as guerras em andamento no mundo e por fim encontra no seu próprio olhar, o presente paradoxal que supera a dor histórica com a arte popular, a música do morro. E para contrafrasear com o paradoxo temporal, o paradoxo social: no mesmo lugar de onde descem vozes que criam terror, desce o som da gentileza.

Peço desculpas professor, se fugi um pouco da proposição, mas duas ocorrências em nossa aula mexeram muito comigo: Numa você disse, analisando um poema, que “na maioria das sociedades a cor negra é associada à morte” e noutra disse que “quando se fala em subúrbio, remete-nos a lugar de ‘mal aparência’(ou termo semelhante)”. Sou do subúrbio e sou descendente de negros e suas colocações se apresentaram para mim como um discurso destoante da realidade (e beleza) que identifico na minha história e lugar, e me considerando poeta marginal, não encontro razões para creditar a pontos de vista, em vez de pontos de vida. Coloco-me de dentro de uma comunidade que é maioria em contingente e que detém menores poderes, e a duras penas conquista pequenos percentuais nas instituições de maiores poderes, ocupadas por minorias. Este é meu lugar de fala e ele tem o poder de desconstruir discursos centrais e fundamentados em bases subversivas. É o meu papel na história que se escreve.

Tentei analisar também em função de um dos paradoxos do Drummond, a questão do presente, passado e memória para não me prejudicar no resultado da avaliação, mas não poderia deixar escolher esse poema, e trazer essa análise em particular.
Saudações.


Natureza França

sábado, 24 de maio de 2014

alegoria da raça ou alforria da dor


choro em oração sem saber 
o que diz meu coração
da emoção que não sei traduzir.
quem sabe é a alma, ela conhece a luz

eu danço em oração no equilíbrio da roda
onde o divino recebe a todos e suas preces 
que sobem pelos pés como um vulcão
e o suor lança ao infinito as preces do chão
que são nossas também

tem festa de reis:
rei negro foi o primeiro a chegar
para ver o menino jesus

nas bandas do rei tem samba de roda e jongo
coco e maracatu
na roda onde cantam as vozes do ontem
responde a alma, o corpo e as palmas.
na roda o povo é rei


acreditou-se apagar, desaparecer
mas os santos deuses negros são 
nossos cânticos os veneram para que mostrem o caminho
onde elevamos o ser


a gente vive, existe e festeja
na história que a gente risca 
a gente resiste às borrachas do poder


nossa alegoria é a alforria da dor que se vai. vai dor...
vai que não há nada mais reluzente neste mundo
que a história de nossa cor.



em 27/04/2014

lua

entardecer na estação
à espera do trem

já ele vem me levar pra ver o sol
que já se vai

no trem do verão
o sol desce depois da ave maria

lá vem maria
mãe da noite e senhora da escuridão



em 07/03/2014

segunda-feira, 19 de maio de 2014

eu choro


eu choro.
choro ao falar com você
choro querendo te ver
choro...

não adianta pedir
emoção não sei calar
choro para te sentir
choro e não quero chorar

distante aqui
choro querendo-te
bebendo-me
consumindo-te o suor

choro e não sei parar
até parei de sambar
pensando em você
chorei de parar

parei de chorar e lembrei
tornei chorar e cansei
não encontrei saída
e choro ainda

choro o tremor do trem
passando até as tantas 
e meu corpo tremendo às tantas
em cima do teu

sim, eles conversam entre si
tomando todo vazio entre nós
vão por vão de vento se vai
e eu choro de saudades de você

eu choro, choro e choro
o cheiro do teu corpo quase preto
tinturando a minha pele mestiça.
chora o meu corpo cheio de ti